Esquerda volver!

A memória e a história dos militares que lutaram pela liberdade do povo brasileiro

Por Lucas Andreto*

O vosso tanque, general,

É um Carro Forte

Derruba uma floresta

Esmaga cem homens,

Mas tem um defeito:

– Precisa de um motorista 

O vosso bombardeiro, general

É poderoso:

Voa mais depressa que a tempestade

E transporta mais carga que um elefante

Mas tem um defeito:

– Precisa de um piloto

O homem, meu general, é muito útil:

Sabe voar, e sabe matar

Mas tem um defeito:

– Sabe pensar

O vosso tanque, General – Bertolt Brecht

            A memória social em geral compartilhada pelas pessoas sobre a ditadura militar e o atual papel das Forças Armadas ao lado de setores reacionários da política brasileira somados ao efeito colateral de um antimilitarismo visceral na esquerda colaboram com um fenômeno conveniente para nossas classes dominantes: o esquecimento intencional de que a história do exército brasileiro contém importantes episódios de lutas populares e presença de um expressivo setor militar de esquerda, ligado ao trabalhismo e mesmo ao comunismo. Em outras palavras, a ditadura e as contradições da Nova República nos esconde o importante fato de que a história dos militares brasileiros não é apenas a história do golpe de 64, da tortura, do assassinato e da ditadura, mas também a história da Revolta da Chibata, da Coluna Prestes e da Aliança Nacional Libertadora.

            Muito diz a respeito desse fato o documentário da TV Câmara, lançado em 2014, sob direção e roteiro de Santiago Dellape, Esquerda Volver. O documentário, por meio de um exercício de memória feito pela entrevista de três ex-militares perseguidos pela ditadura devido ao posicionamento político deles, lança luz sobre aspectos pouco conhecidos da história do Brasil e expressa que as contradições de classe e de projetos politico-sociais ligados às classes em luta em nossa sociedade também transpassam a história do exército. Os militares que foram defensores de projetos compartilhados pelas oligarquias brasileiras de entrega das riquezas nacionais para as nações estrangeiras e repressão às lutas por direitos do movimento operário e camponês receberam sempre uma anistia completa, ainda que estivessem envolvidos em causas declaradamente antidemocráticas, como foi o integralismo. Por outro lado, os militares que se envolveram na luta dos movimentos populares por direitos sociais e pela propriedade social das riquezas nacionais foram presos, torturados e mortos, a anistia nunca lhes foi dada de maneira completa, ainda que tenham dado provas de fidelidade a democracia e a Constituição como, por exemplo, aqueles que defenderam o presidente João Goulart frente aos seus opositores golpistas. 

Esquerda Volver [2014] - YouTube
O documentário Esquerda Volver está disponível no Youtube

            Fernando de Santa Rosa era Capitão de Mar e Guerra e foi expulso da Marinha depois do golpe de 64 por ter sido a favor da política de reformas de base de João Goulart. Santa Rosa respondeu inquérito sendo acusado de ter “vocabulário comunista” e relações no meio sindical. Teve de apresentar-se à diretoria geral da Marinha e ficou preso por 58 dias no navio Princesa Leopoldina.

            Joaquim Aurélio de Oliveira serviu a Marinha, com forte espírito nacionalista, passou a defender a causa dos trabalhadores e tornou-se leitor do jornal comunista “A Voz Operária”. Foi um dos marinheiros insurgentes quando da ocupação do Palácio do Aço, sede do sindicato dos metalúrgicos do Rio de Janeiro, já as vésperas do golpe militar. A ocupação deu-se em decorrência da comemoração do 2° Aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, que contou com a presença e discurso de Leonel Brizola. A festa acabou transformando-se em insurreição e marinheiros e operários metalúrgicos confraternizaram-se em apoio a João Goulart e contra a campanha golpista que a cada dia ameaçava com mais força a derrubada do governo. Quando no dia 26 de março foi enviada uma escolta de fuzileiros para desfazer a ocupação do sindicato, os insurgentes convenceram os soldados para sua causa, de maneira que os fuzileiros juntaram-se na ocupação. O então ministro do Trabalho, Amauri Silva, negociou a desocupação do prédio que foi feita no dia 27. Ao saírem do prédio os marinheiros foram presos, mas João Goulart lhes deu uma anistia em seguida.

            Vicente Silvestre, por sua vez, foi coronel da Polícia Militar de São Paulo. Interessou-se por política em sua juventude por meio de amigos operários que militavam no Partido Comunista Brasileiro (PCB) e engajaram-se na campanha “O Petróleo é Nosso”. Silvestre foi comandante do destacamento da PM encarregado de reprimir os estudantes da USP em confronto com os da Mackenzie na Batalha da Rua Maria Antônia. Ao ver que a própria reitoria da Mackenzie fornecia aos seus estudantes gasolina, garrafas e estopas para jogar bombas caseiras nos estudantes da USP, Silvestre recusou-se a executar a missão, de maneira a ser substituído no comando do destacamento. Em 1975, Vicente é sequestrado na própria casa, levado ao comando da PM, torturado e obrigado a responder “se achava que o comunismo resolveria o problema do Brasil” no que respondeu prontamente: “não resolveria apenas os problemas do Brasil, mas de todos os povos oprimidos do mundo”. Em consequência, ficou preso sob torturas por quatro meses. Ao ser libertado, foi expulso da PM, impedido por lei de trabalhar tanto no setor público quanto privado e sua mulher passou a receber uma pensão de viúva. Posteriormente, seus posicionamentos ainda fizeram com que a ditadura o prendesse por mais dois anos, ocasião em que ele conheceu vários presos políticos e pode estudar “O Capital” de Karl Marx.

            As três trajetórias que poderiam ser bastante díspares guardam importantes traços em comum: os três entrevistados interessaram-se pela política no contexto da redemocratização de 1945, identificando-se com o projeto nacionalista e popular então defendido pelo PCB, atuaram dentro do exército de acordo com esses princípios, insubordinaram-se contra a hierarquia militar quando essa tentou jogar o exército contra o povo brasileiro e, por isso, foram perseguidos, presos, torturados e tiveram a carreira militar interrompida pela ditadura que vigorou em nosso país de 1964 a 1985.

            O processo de anistia que veio em 1979, como analisou o historiador Paulo Ribeiro da Cunha, teve a tônica de uma conciliação que favorecia torturadores e assassinos do regime militar, que não tiveram seus crimes investigados ou punidos. Os militares perseguidos pela ditadura, por sua vez, foram o principal grupo social que, ou não conseguiram anistia ou conseguiram, mas jamais foram reinseridos no exército ainda que formalmente. Ribeiro da Cunha salienta que tal resultado é apenas um episódio de um traço comum nas 48 anistias políticas já ocorridas no Brasil: elas apenas realmente perdoaram quem não representava perigo real aos projetos da burguesia brasileira. Tal característica tem como marco principal a anistia assinada por Vargas em 1945, que não permitiu aos militares nacional libertadores e comunistas participantes da revolta da ANL em 1935 voltarem ao exército, mas deu essa permissão aos integralistas que quase assassinaram o próprio Getúlio Vargas em 1938, de maneira que os militares integralistas reinseridos no exército tiveram a oportunidade de crescer de patente dentro e participar da escalada golpista em 1964.

            Esquerda Volver, com seus singelos 23 minutos, chama atenção para questões grandiosas. Mostra que a esquerda brasileira deve perder sua ojeriza aos militares e convidá-los para fazer parte de um projeto social emancipatório ligado aos interesses da classe trabalhadora e que honra uma tradição democrática existente dentro do exército brasileiro, sufocada em sangue pela ditadura, não retomada da maneira como deveria na democracia, e que como salientou Ribeiro da Cunha, deve ser dignificada. Aos militares, o documentário mostra que servir verdadeiramente a nação e pátria requer não a obediência cega à hierarquia, mas coragem de enfrentar os interesses de uma elite econômica vendida ao estrangeiro e se colocar ao lado do povo de seu país. Possivelmente, essa é uma tarefa essencial para aqueles que querem superar o legado antidemocrático que a ditadura militar deixou no nosso país.

O documentário pode ser assistido AQUI.

*Lucas Andreto é historiador, mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor da dissertação de mestrado A Formação do Partido Comunista do Brasil (PCB) na cidade de São Paulo (1922 – 1930).

Livros sugeridos:

MORAES, J.Q. A esquerda militar no Brasil: da conspiração republicana à guerrilha dos tenentes. São Paulo: Expressão Popular, 2005.
SODRÉ, N.W. História Militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

_____. Memórias de um soldado. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1967.

TELES, E; SAFATLE, V. (org). O que resta da ditadura? São Paulo: Boitempo, 2010.

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