Por Ricardo Normanha*
Artigo publicado originalmente na Revista Clio Operária
O funeral do jovem Martinez se transformou num imenso protesto que ganhou as ruas da capital paulista. A revolta pelo assassinato do sapateiro espanhol, somada à rebeldia contra as péssimas condições de trabalho nas fábricas se espalhou.

O dia 9 de julho é uma data comumente associada a um evento histórico marcante da história do Brasil e é largamente comemorado, especialmente no Estado de São Paulo. Nas escolas e nos livros didáticos aprendemos sobre a dita Revolução Constitucionalista de 1932, quando os paulistas se revoltaram contra o projeto supostamente autoritário de Getúlio Vargas. Basta uma leitura um pouco mais cuidadosa e crítica da história para perceber que o 9 de julho trata-se, na realidade, de uma resposta da oligarquia paulista à Revolução de 1930 que, em certa medida, significou uma ruptura com o projeto de perpetuação do poder das oligarquias latifundiárias de São Paulo e Minas Gerais, colocando um ponto final no que convencionamos chamar de República Velha. É claro que a Revolução de 1930 se deu pelo alto e promoveu um projeto de modernização conservadora permeado por inúmeras contradições. Mas também é fato notório que o Brasil pós 1930 é outro, substancialmente diferente do grande “fazendão” que o caracterizava desde a Colônia e que se manteve durante o Império (1822-1889) e a Primeira República (1889-1930). É sabido também que, embora comemorada com muito orgulho pela oligarquia paulistana, a tal Revolução Constitucionalista de 1932 representou a consagração da derrota desta oligarquia frente ao projeto de nação encabeçado por Getúlio Vargas.
Mas não é sobre esse 9 de julho que gostaria de escrever. Esse já é bastante difundido e faz parte dos currículos escolares, das abordagens da mídia, está integrado ao calendário estadual como feriado, compõe o cronograma das comemorações cívicas e nomeia ruas e avenidas em muitas cidades paulistas. Quero aqui colocar em relevância um outro episódio que ocorreu em um fatídico 9 de julho e que faz parte da história de luta e resistência da classe trabalhadora brasileira e, como tal, é sistematicamente invisibilizado pela “história oficial”. O relato abaixo teve como fonte principal o livro A Greve de 1917: os trabalhadores entram em cena, de José Luiz Del Roio.
Foi numa manhã do dia 9 de julho de 1917 que os trabalhadores e trabalhadoras da fábrica têxtil Crespi, no bairro da Mooca, partiram em uma grande marcha rumo a outra indústria têxtil, a Mariângela, no bairro do Brás, de propriedade do Conde Francisco Matarazzo, um dos industriais mais ricos do país naquela época. Para entender o motivo deste cortejo e o porquê do destino ser a fábrica de Matarazzo, é importante voltarmos um pouco mais no tempo.
Desde os primeiros dias de junho deste emblemático ano de 1917, os trabalhadores e trabalhadoras da empresa Crespi, de propriedade do italiano Rodolfo Crespi, haviam decidido entrar em greve por melhores condições de trabalho e aumento salarial de 20%. O tratamento das reivindicações dos trabalhadores e trabalhadoras por parte do empresário foi aquele tradicionalmente destinado aos anseios do povo: recusa seguida de repressão. No decorrer do mês de junho, os valentes operários e operárias da fábrica Crespi não arredaram o pé: mantiveram-se fortemente mobilizados, realizaram manifestações públicas e buscaram articular a ampliação do movimento com os trabalhadores e trabalhadoras de outras empresas da capital paulista e também do interior. Os empresários, como de costume, não tardaram em lançar mão de todos os artifícios disponíveis para colocar fim à greve e a mobilização operária, desde o uso dos fura-greves até o apelo às forças de segurança do Estado para promover a repressão ao movimento. Além disso, outra artimanha utilizada pelos empresários, em especial de Rodolfo Crespi, era transferir parte da produção paralisada para outras empresas parceiras, uma espécie de terceirização emergencial, visando atender as demandas de produção. Foi neste sentido que Francisco Matarazzo se ofereceu para ajudar o conterrâneo Rodolfo, produzindo em sua empresa Mariângela parte das demandas da fábrica Crespi. E este foi o motivo pelo qual os trabalhadores e trabalhadoras seguiram em cortejo da Mooca até o Brás.
A essa altura, após um mês de intensa mobilização, a greve dos operários e operárias da Crespi já tinha ganhado uma dimensão nunca antes vista na cidade e no Estado de São Paulo. Outras empresas foram paralisadas pelos trabalhadores eufóricos pela força dos companheiros da Crespi e a greve extrapolava as pautas específicas de cada uma das empresas. Esta dimensão deixava, cada vez mais, patrões e Estado acuados e temerosos quanto aos rumos do conflito. Em razão disso, a resposta foi se tornando cada vez mais dura e cruel. Passeatas, não raro, acabam em repressão violenta, prisões e demissões.
E foi isso que se sucedeu neste dia 9 de julho. Ao marcharem a passos firmes pelos bairros operários de São Paulo, o movimento foi duramente atacado pelas forças de segurança do Estado. As palavras do escritor e militante José Luiz Del Roio ilustram com clareza a cena:
O percurso fora interrompido pouco depois de passarem pela [fábrica da Companhia] Antártica, no meio do caminho. Ao chegar à rua Monsenhor Andrade, próximo à esquina da Fernandez Silva, trinta cavalariços e cinquenta soldados armados atacaram a multidão. A ordem agora era atirar. Ouviram-se estampidos e gritos, os manifestantes revidam, inclusive com armas de fogo. Entre os feridos estava o jovem espanhol José Ineguez Martinez, 21 anos, que faleceu um dia depois na Santa Casa de Misericórdia. O drama de Martinez chocou os paulistanos (DEL ROIO, 2017, p. 61).
O jovem imigrante espanhol, assim como tantos outros imigrantes, veio com a família para o Brasil fugindo das condições de pauperização pela qual seu país passava naquele momento. Tão logo chegou a São Paulo, no início de 1917, em razão de uma doença que havia cometido seu pai, José Martinez se tornou responsável pelo sustento da família com o trabalho de sapateiro. Morto pela polícia que agia à serviço do capital, interrompeu os anseios da família por uma vida digna. Mas sua morte acendeu o pavio de um barril de pólvora que não tardou em explodir. O funeral do jovem Martinez se transformou num imenso protesto que ganhou as ruas da capital paulista. A revolta pelo assassinato do sapateiro espanhol, somada à rebeldia contra as péssimas condições de trabalho nas fábricas se espalhou. Trabalhadores e trabalhadoras de mais de 30 empresas aderiram massivamente à greve. Cerca de 20 mil operários estavam mobilizados e dispostos a não arredar o pé de suas reivindicações.
Detalhe do Jornal A PLEBE, do dia 28 de julho de 1917, com a imagem do cortejo do sapateiro espanhol José Martinez – Este documento encontra-se no Acervo de Astrojildo Pereira, custodiado pelo Centro de Documentação e Memória da Unesp
Os dias que sucederam o enterro de José Martinez incendiaram a cidade de São Paulo reverberando em outras cidades do interior e até em outros estados do país. A grande Greve Geral de 1917 foi um marco importante para o avanço organizativo da classe operária, ainda em formação, e entrou para a história da classe trabalhadora brasileira de forma decisiva. Não é demais ressaltar que a Greve foi barbaramente reprimida. Muitos corpos, como o de Martinez, tombaram nesta batalha. Sindicatos e associações de trabalhadores foram fechados e seus líderes perseguidos e presos. Mas havia algo que os empresários e o Estado jamais puderam arrancar dos trabalhadores: sua revolta e sua capacidade de organização, mesmo nas mais adversas condições.
Em 2017, no centenário da emblemática Greve Geral, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou a Lei 16634/17, de autoria do vereador Antonio Donato (PT), instituindo no calendário de comemorações cívicas do município o dia 9 de julho como o Dia da Luta Operária. É um pequeno mas necessário passo para que a história da classe trabalhadora seja lembrada e rememorada. E que, um dia, em breve, os livros didáticos, as praças, ruas e avenidas do Brasil possam saudar o nosso 9 de Julho, o 9 de Julho da classe trabalhadora. Como ressaltou Salvador Allende em seu derradeiro discurso: A História é nossa e a fazem os povos!
Fontes:
DEL ROIO, José Luiz. A Greve de 1917: Os trabalhadores entram em cena. São Paulo: Alameda, 2017.
CARTA MAIOR. Allende: ‘A História é nossa e a fazem os povos’. Disponível em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Allende-A-Historia-e-nossa-e-a-fazem-os-povos-/6/14434 (Acesso em 07/07/2021).
SÃO PAULO. Casa Civil do Gabinete do Prefeito. LEI Nº 16.634 DE 17 DE ABRIL DE 2017. Disponível em http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-16634-de-17-de-abril-de-2017 (Acesso em 07/07/2021)
*Ricardo Normanha é sociólogo, pesquisador, professor, membro do Conselho Editorial da Revista Novos Rumos e da Diretoria do Instituto Astrojildo Pereira.