Por Lucas Andreto*
No ano de 1985, o dirigente comunista português Álvaro Cunhal escreveu um livro cujo objetivo era “dar a conhecer como nós, comunistas portugueses, concebíamos, explicávamos e desejávamos o nosso próprio partido”. Deu nome ao livro de O Partido com Paredes de Vidro, pois assim “podiam os leitores, observar e conhecer por dentro o Partido Comunista Português (PCP), como se o fizessem através de paredes de vidro”. Alvaro Cunhal pretendia, dessa forma, expor a fragilidade de uma imagem mais ou menos mitológica a respeito dos partidos comunistas, construída e alimentada tanto pelos cânones do marxismo soviético quanto pelos liberais e anticomunistas (ainda que com conotações e propósitos antagônicos): a imagem de um partido político extremamente burocrático, rigidamente centralizado, ausente de debates ou contradições internas e que tem sua engrenagem partidária movida por militantes autômatos que executam tarefas tal qual uma máquina. Ou então, nas palavras do próprio Cunhal, “um partido aferrolhado num bunker com grossas paredes de cimento, ocultando os seus verdadeiros objetivos e a realidade da sua vida interna”.
Das fontes disponíveis para escrever a história dos partidos, talvez uma das menos explorada sejam as cartas entre os militantes de base e os militantes de base e as direções dos partidos. Esse tipo de material permite ao historiador acessar uma dimensão da vida das organizações políticas que as atas, documentos oficiais, programas partidários e jornais partidários geralmente não permitem. Elas funcionam como uma espécie de imagem dos bastidores das organizações políticas, local onde se mostra presente os aspectos muitas vezes corriqueiros da vida partidária, mas que não comparecem em documentos de caráter formal ou feitos para leitura pública.
No que diz respeito à história dos Partidos Comunistas, as cartas dos militantes são um documento de grande importância justamente por permitir reconstruir “com paredes de vidro” a história desses partidos muitas vezes retratados pela historiografia como tendo as duras paredes de cimento. Mais do que isso, por serem documentos involuntários (segundo termo de Marc Bloch), as cartas permitem uma análise não apenas do que os partidos comunistas desejavam e pensavam de si mesmos, mas como eles eram na prática, com todos os problemas que naturalmente nascem da vida de militância política.

A história do PCB pode ser uma amostra exemplar nesse sentido, e as cartas trocadas entre Astrojildo Pereira (secretário-geral do partido entre 1922 – 1930) e outros militantes comunistas, presentes no Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano (ASMOB), Fundo Astrojildo Pereira e depositados sob custódia no Centro de Documentação e Memória da Unesp, revelam-se um material de extrema importância para esse trabalho.
A documentação de Astrojildo Pereira tem importância especial por corresponder ao período inicial de construção do Partido Comunista Brasileiro. Os anos 20 são o momento em que os comunistas brasileiros tem de erigir um partido comunista, aos moldes da III Internacional, sob as bases de um movimento operário recém-derrotado nas jornadas grevistas de 1917 – 1920 e dividido entre militantes que seguiram fiéis ao anarquismo ou ao socialismo reformista e eles mesmos, isto é, aqueles que encontraram na Revolução Russa as respostas para os problemas do movimento operário brasileiro.
Em teoria, um partido comunista deve reunir os elementos mais convictos e engajados na causa da revolução do proletariado, deve organizar-se pelo centralismo-democrático (elegibilidade das células dirigentes do partido por parte das células de base, cumprimento das decisões tomadas pela instância máxima, o Comitê Central Executivo em todas as células de base), construir células comunistas em cada fábrica, sindicato, associação de trabalhadores, bairros e escolas, deve formar seus quadros de militantes na teoria marxista-leninista e na prática do movimento operário e ter um jornal de âmbito nacional como orientador ideológico e órgão de propaganda do partido para a população. Assim, os comunistas construiriam uma organização política disciplinada e apta qualitativamente para realizar a revolução social.
Na prática, a construção de um partido nesses moldes encontrava toda a sorte de empecilhos que faziam o trabalho do militante comunista difícil, muitas vezes enfadonho, demandando uma grande paciência e força de vontade para conseguir construir o movimento. Evidentemente, o maior e mais famoso dos problemas para a construção de uma organização comunista era a perseguição policial e a repressão por parte do Estado, mas havia também toda sorte de questões mais prosaicas que comparecem como relatos nas cartas pertencentes a Astrojildo Pereira.
Dificuldades com propaganda e penetração nas fábricas, problemas para erguer recursos financeiros, brigas internas de cunho pessoal, conflitos sindicas, etc; tudo isso era parte da vida cotidiana dos comunistas. Se por um lado a teoria partidária leninista declarava a existência de um jornal comunista que orientasse e politizasse as massas proletárias em direção à revolução, a vida real no contexto da Primeira Republica, quando a circulação das pessoas e das informações era muito mais lenta da que estamos habituados nos dias atuais, obrigava os comunistas a lidar com o atraso das datas que os jornais deveriam chegar, com o extravio e consequente perda do material pelo caminho (muitas vezes confiscado pela polícia política), ou simplesmente a dificuldade de vender um jornal considerado “velho”, isto é, que já não era a última edição do periódico.
Ainda que teoricamente o partido de tipo leninista seja um partido de revolucionários profissionais, era impossível um partido de fundos financeiros modestos manter por conta própria todos os militantes e como os comunistas eram seres humanos que vivem em sociedade, com necessidades e obrigações comuns, problemas como a chegada do jornal do partido na data correta gerava reclamações como a do célebre comunista Everardo Dias.
Eu, como você [Astrojildo Pereira] sabe, não vivo de expedientes, os vinténs que as vezes consigo são de uma venda minúscula de livros, coisa incerta e mísera. Não posso arcar com tantos prejuízos e ter tantas atribuições e perder tão estupidamente tanto tempo. […] Não recuso trabalho nem receio sacrifícios. Mas há de convir você que eu não posso estar do correio para casa e de casa para o correio sem nada de útil realizar devido a uma desorganização nos serviços administrativos[1]
Trecho da Carta à Gildo, de Everardo Dias. São Paulo, 06/02/1927 – ASMOB – IAP / Fundo Astrojildo Pereira
A dificuldade financeira do órgão partidário não apenas era uma dificuldade corriqueira para os militantes comunistas como também era a fonte de uma criatividade por parte dos militantes que raras vezes aparece na imagem do “partido com paredes de cimento” comum na historiografia. Foi o caso do concurso eleitoral planejado por Plínio Mello para erguer fundos para o Bloco Operário e Camponês (frente eleitoral do PCB) participar das eleições na cidade de São Paulo. Tratava-se de um concurso em três etapas que distribuiria prêmios como sacos de arroz, entradas para o cinema, cigarros, sapatos, litros de leite, sacos de café, cobertores, etc para os operários que conseguisse mobilizar maior número de conhecidos para se alistar eleitoralmente pelo BOC. O concurso, à primeira vista bastante estranho para o que se imagina de um partido marxista-leninista, foi aprovado por Astrojildo Pereira e só não ocorreu por falta de braços e dinheiro[2].
Importante é notar o alto grau de discussão dentro das células e organizações comunistas em geral. Os comunistas discutiam ferrenhamente as propostas a serem colocadas em prática no movimento operário, buscavam estudar e debater teoria marxista, tentavam de todas as maneiras usar disso pra cunhar uma teoria da revolução brasileira. Por vezes, o debate sobre teoria, organização e política resvalava para escaramuças pessoais e os membros da organização aborreciam-se mutuamente. Entretanto, essa vida interna bastante rica e presente nas cartas que Astrojildo trocou com militantes como Plínio Mello e Everardo Dias revelam uma pujante vida democrática interna no PCB durante a década de 20[3].
Outro aspecto de interesse presente nas cartas de Astrojildo, são os relatos sobre a disputa dos sindicatos entre os comunistas e outras forças políticas do movimento operário. O confronto sindical com os anarquistas desperta atenção especial por demonstrar o clima de difícil entendimento pelo qual passava os ambientes do movimento operário na década de 20, bem como permite medir a que pé andava e os limites da democracia nas organizações operárias. Assim, mais uma vez dizia Everardo Dias à Astrojildo Pereira à respeito de um acontecimento no sindicato dos sapateiros de São Paulo:
Aqui houve a cisão entre os sapateiros. Era impossível a vida para os comunistas. Não podiam falar. A claque anarcóide os insultava, gritava, berrava, fazia barulho, apitos de todos os lados. Era asfixiante. Veio a cisão por causa da proposta do programa do Bloco [dos Operários em Calçados]. Na votação, perdemos por quatro 4 votos, mas do lado dos anarcóides votaram elementos que não eram sapateiros, e pertencentes ao Sindicato dos Ofícios Vários – arca de Noé criada por [Domingos] Passos ultimamente. Protestando nossos companheiros, disseram que sendo um sindicato operário, todos podiam votar[4].
Trecho da Carta à Gildo, de Everardo Dias. São Paulo, 15/07/1927 – ASMOB – IAP / Fundo Astrojildo Pereira
O depoimento de Everardo Dias revela a dimensão da cisão interna do movimento operário e o quanto isso fraturava dramaticamente a vida interna das organizações proletárias.
São todos aspectos que se juntam a outros e fazem das cartas fontes promissoras para o historiador, para o cientista político e social e mesmo para os militantes políticos das novas gerações. Reconstruir a história dos Partidos Comunistas no século XX de maneira a demolir as paredes de cimento erguidas pelos historiadores da Guerra Fria e dar-lhe as paredes de vidro é tarefa urgente para nossos tempos que a política parece errar entre o oportunismo eleitoreiro e carente de horizonte emancipatório e uma extrema direita obscurantista que vê na política o caminho mais rápido de retorno à Idade Média.
*Lucas Andreto é historiador, mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor da dissertação de mestrado A Formação do Partido Comunista do Brasil (PCB) na cidade de São Paulo (1922 – 1930).
[1] DIAS, Everardo. Carta à Gildo. 06/02/1927. (CEDEM – Fundo Astrojildo Pereira)
[2] MELLO, Plínio. Carta à Astrojildo, São Paulo. 13/08/1928. (CEDEM – Fundo Astrojildo Pereira).
PEREIRA, Astrojildo. Carta à Plínio Mello, Rio de Janeiro. 21/08/1928. (CEDEM – Fundo Astrojildo Pereira).
[3] Carta de Plínio a Astrojido. São Paulo, 14/09/1928. (CEDEM – Fundo Astrojildo Pereira).
Carta de Plínio a Astrojildo, São Paulo. 16/09/1928. (CEDEM – Fundo Astrojildo Pereira).
Carta de João Freire de Oliveira a Astrojildo Pereira. Santos, 01/09/1928. (CEDEM – Fundo Astrojildo Pereira).
[4] DIAS, Everardo. Carta à Gildo. São Paulo, 15/07/1927. (CEDEM – Fundo Astrojildo Pereira).